sexta-feira, 8 de abril de 2011

Quando Carlota caiu na fossa foi parar do outro lado do mundo


João. Figura de lugar nenhum, de estória nenhuma. Que vem apenas para começar essa estória, já que a autora não tem nenhuma idéia melhor.
Carlota não era homem e nem mulher, pois essas distinções de sexo não têm nada a ver com que se pretende contar agora, basta saber que ele(a) queria inventar uma estória.
Tinha-se: tempo, lápis, papel, uma máquina de escrever e quatro personagens. Faltava-lhe um protagonista.
João o ser sem importância, sem estória, vindo de lugar nenhum e que não teria nenhuma outra utilidade nesse texto além de iniciá-lo, é convidado a se tornar protagonista. Aceita.
Carlota tenta contar sua estória, pois agora que tudo está completo, tem-se: tempo, lápis, papel, uma máquina de escrever e cinco personagens sendo um o protagonista.
A estória é como um parto, difícil. Com o tempo os personagens passam a não mais seguir a estória que Carlota quer contar e vão criando suas próprias estórias.
Carlota vai cada vez mais entrando dentro de si mesmo. Sua estória não lhe pertence mais. Tenta matar seus personagens, mas ao final, são eles que o matam. 


Texto de Ana Reis!

História

Meu bisavô, José, era um desses descendentes de alemães/judeus, que viviam na Bélgica e desembocaram aqui no Brasil no início do século XX, buscando não exatamente os atrativos tropicais do país, mas simplesmente um prato de comida. Conheceu minha bisavó, sua prima de segundo grau, no Norte de Minas, numa cidade pequenina e quente chamada Pescador, onde casaram e começaram uma prole que contaria, ao final, com 23 integrantes.
Minha bisavó, Dona Maria, era mulher de olhos fundos e mãos secas, mas cheias de bondade. E foi por essa bondade que ela abriu as portas da casa e acolheu uma negrinha, ainda bem moça, àquela altura uma perdida na vida, colocada pra fora de casa com uma mão na frente outra atrás e um filho na barriga. A negrinha era Sá Firmina. Para a Bisa, onde comia dez comia mais um, ao menos foi isso que ela disse ao meu bisavô, que não fazia boas vistas, nem simpatizava muito com a nova integrante da família. Como típico alemão, não tinha as melhores impressões daquela gente brasileira roxinha.
Sá Firmina apesar da pouca idade já tinha vivido muita vida. Quando ria, mostrava um riso solto, estampado por uns dentes brancos, feito colar de conta. Seus olhos eram sempre cheios de muito carinho, que, mesmo depois de uma vida inteira, nunca saiu do seu jeito de olhar. Ajudava minha bisavó em tudo o que podia, sendo meio irmã, meio filha, meio mãe, e não se separou deles nem mesmo quando decidiram se mudar para Belo Horizonte, com uma renca de meninos na bagagem.
A nova vida na cidade era difícil como poderia ser pra uma família numerosa do interior, não tardando muito para que minha bisavó também começasse a trabalhar fora. Levantava cedinho na manhã, voltava todos os dias no final da tarde, deixando a casa e os meninos, agora já crescidos, sob os cuidados de Sá Firmina. Um dia, no entanto, encontrou as coisas um pouco diferentes ao voltar.
            É que meu bisavô, nesse dia, acordou ensimesmado, bem mais sisudo do que o normal, parecia com “o diabo no corpo”. Começou a andar pela casa de um lado para o outro, pisando forte, resmugando, reclamando de tudo o que via pela frente. E talvez por azar ou mesmo por reprimida vontade viu Sá Firmina. É verdade que os dois não cultivavam uma recíproca afeição, mas nunca meu bisavô detestou tanto a figura daquela mulher como naquele momento... e quando se deparou com ela comendo a manga que estava fruteira, a sua manga, a manga que mais gostava, que tinha comprado para sua casa, para hora que quisesse comer e que comeria como bem entendesse, não hesitou em despejar a raiva de todos aqueles anos, colocando Sá Firmina de mala e cuia no meio da rua, ao som de todas pragas que conseguia se lembrar.
            A mulher não disse uma palavra. Simplesmente arrumou as poucas roupas na pequena maletinha, sentou na calçada, e lá ficou durante um dia inteiro, esperando minha bisavó chegar. Dona Maria quando viu aquela cena, não custou muito a entender o que se passava. Entrou então em casa, ignorou a presença do meu bisavô, seguiu silenciosa para o quarto, tirou uma mala do guarda-roupa e começou a colocar tudo o que era seu. Seu José, em pânico, esbravejava que aquela mulher era uma impertinente, que não era possível aguentar uma coisa assim, afinal era ou não era o dono daquela casa? Dona Maria arrumava as coisas impassível e quando já tinha tudo mais ou menos ajeitado, olhando duramente para meu bisavô, disse: “José, se a Firmina sair por aquela porta, eu vou junto com ela. Você é quem escolhe.” Assim dizendo, já foi saindo com a mala na mão, sob muitos olhinhos assustados das crianças que se amontoavam sem entender o que acontecia. José já conhecia bastante sua mulher para saber que aquela era mesmo uma decisão, que nada poderia mudar seu propósito, a não ser o fato de ele aceitar Sá Firmina de volta. E, desse modo, não só aceitou como também teve que buscar amuado a mala na calçada, sentindo seu orgulho descer seco pela garganta.